segunda-feira, maio 26, 2008

Vida Fascista


Começo com o filme de Sérgio Bianchi (2005) e a provocação que nos faz já no título: “Quanto vale ou é por quilo?” Pergunto, então: o que está sendo avaliado ou pesado aí? Responde-se um tanto arriscadamente: pesa-se e avalia-se a vida.

O filme apresenta nossa roda viva[1] contemporânea onde os personagens circulam entre diversos papéis: o herói se torna ladrão; o ladrão, mártir; o mártir, corrupto; o corrupto, vítima; a vítima, inabalável; o inabalável, cúmplice; o cúmplice, algoz... A vida enclausurada, a vida sitiada, a vida que parece não conseguir mais escapar, que não consegue parar de se reproduzir, a vida subjugada a um regime fascista sem um déspota para responsabilizar,

“o fascismo que está em nós todos, que martela nossos espíritos e nossas condutas cotidianas, o fascismo que nos faz amar o poder, desejar esta coisa que nos domina e nos explora.” (Foucault, 1977)

A título de ilustração, peço licença para contar um causo:

“Andávamos eu e meu amigo carioca em sua primeira estada em Porto Alegre. Levei-o ao mirante do Morro Santa Teresa para que visse o Beira Rio de cima, além de outras paisagens. Lá encontramos Daniel, um menino maltrapilho de uns 5 anos, tão parte de nossa paisagem urbana que já não o ouvíamos...

– Tio, me dá uma moeda?

Meu amigo e sua típica comunicabilidade carioca disse ao menino:

– Quaé, rapá?! Não dá nem ‘oi’ nem ‘boa tarde’ e já chega pedindo moeda?

– Tem moeda, tio? Me dá uma moeda, tia?

Explico ao menino que meu amigo é turista e tal e lhe daria uma moeda se ele me dissesse qual era o nome da cidade na outra margem do rio para onde eu apontava.

– “Cidadi” – o menino respondia várias vezes às minhas insistências e inúteis facilitações e dicas.

– Acho que esse menino não entende o conceito de cidade – pensei. Resolvi mudar o pedido:

– Então me diz o que tu mais gosta de fazer.

– Não sei dizer, não sei falar.

– Tu não sabe falar?

– Não, minha mãe bate na minha boca, só sei pedir moeda.”

Senhores, que povo[2] fala na boca desse menino? Quantas moedas vale um povo que (não) se faz falar?

Estamos falando de uma vida e de uma história que (quase) não conseguem mais escapar. É a vida do homem em constante invenção de si e do mundo (vida como obra de arte) que quer escapar de uma “história que nos separa de nós mesmos, e que deveríamos transpor e atravessar para pensarmos a nós mesmos” (Deleuze, 1992. p.119).

Parece que o filme e a marca que ele deixou queriam perguntar: de que ferramentas precisamos para ouvir e ver agenciamentos coletivos de enunciação e não apenas a queixa-conduta dos indivíduos, a oferta de pão-e-leite ou o ‘me-dá-uma-moeda’? Que lugar ocupamos nesta roda viva que não pára de se reproduzir?

O filme mostra a máquina de Estado (principalmente em suas engrenagens burocráticas e corruptas) se infiltrando nas instituições que deveriam regulá-la: as ONGs (organizações não-governamentais) e suas fachadas assistencialistas de uma população à beira da miséria. Mas acaba dando visibilidade a todo um funcionamento social que acaba tragicamente se utilizando dessas mesmas engrenagens para sobreviver. Eis a roda viva.

E então pergunto: como pensar o que escapa e quer escapar da roda viva e criar novos territórios existenciais para um povo que não se divide entre pobres ou ricos, pretos ou brancos, honestos ou corruptos? Estas binariedades é que dão lugares aos que podem falar e calam os que não podem, nos fazendo esquecer que sempre que falamos, falamos em nome de um povo, de um coletivo. Sérgio Bianchi nos possibilita ver que na roda viva somos todos pobres e ricos e pretos e brancos e honestos e corruptos... a roda viva está aí a capturar todos.

Então, tanto em arte como em política, “trata-se de liberar a vida lá onde ela é prisioneira ou de tentar fazê-lo num combate incerto” (Deleuze/Guattari, 2005. p.222). E a vida só quer devir e produzir mais vida enquanto devir, mas eis que chega roda vida e carrega o desejo pra si. Na roda viva, a vida só quer moeda.



[1] Alusão à popular canção Roda Viva de Chico Buarque que fazia uma referência à aparelhagem do estado militarizado e suas estratégias para calar a vida que queria falar.

[2] Para Deleuze (2006, p.346-347) os enunciados não remetem ao EU como sujeito de enunciação. O que produz os enunciados que nos atravessam são massas, matilhas, povos, tribos, enfim, agenciamentos coletivos que nos são interiores e que nós não conhecemos porque fazem parte do nosso próprio inconsciente enquanto multiplicidade. Assim, a tarefa de uma verdadeira análise é descobrir esses agenciamentos de enunciação, esses encadeamentos coletivos, esses povos que estão em nós e que nos fazem falar. Opomos então todo um campo de experimentação pessoal ou de grupo às atividades de uma máquina automática de interpretação ou de aplicação técnica.

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