
Começo com o filme de Sérgio Bianchi (2005) e a provocação que nos faz já no título: “Quanto vale ou é por quilo?” Pergunto, então: o que está sendo avaliado ou pesado aí? Responde-se um tanto arriscadamente: pesa-se e avalia-se a vida.
O filme apresenta nossa roda viva[1] contemporânea onde os personagens circulam entre diversos papéis: o herói se torna ladrão; o ladrão, mártir; o mártir, corrupto; o corrupto, vítima; a vítima, inabalável; o inabalável, cúmplice; o cúmplice, algoz... A vida enclausurada, a vida sitiada, a vida que parece não conseguir mais escapar, que não consegue parar de se reproduzir, a vida subjugada a um regime fascista sem um déspota para responsabilizar,
“o fascismo que está em nós todos, que martela nossos espíritos e nossas condutas cotidianas, o fascismo que nos faz amar o poder, desejar esta coisa que nos domina e nos explora.” (Foucault, 1977)
A título de ilustração, peço licença para contar um causo:
“Andávamos eu e meu amigo carioca em sua primeira estada
– Tio, me dá uma moeda?
Meu amigo e sua típica comunicabilidade carioca disse ao menino:
– Quaé, rapá?! Não dá nem ‘oi’ nem ‘boa tarde’ e já chega pedindo moeda?
– Tem moeda, tio? Me dá uma moeda, tia?
Explico ao menino que meu amigo é turista e tal e lhe daria uma moeda se ele me dissesse qual era o nome da cidade na outra margem do rio para onde eu apontava.
– “Cidadi” – o menino respondia várias vezes às minhas insistências e inúteis facilitações e dicas.
– Acho que esse menino não entende o conceito de cidade – pensei. Resolvi mudar o pedido:
– Então me diz o que tu mais gosta de fazer.
– Não sei dizer, não sei falar.
– Tu não sabe falar?
– Não, minha mãe bate na minha boca, só sei pedir moeda.”
Senhores, que povo[2] fala na boca desse menino? Quantas moedas vale um povo que (não) se faz falar?
Estamos falando de uma vida e de uma história que (quase) não conseguem mais escapar. É a vida do homem em constante invenção de si e do mundo (vida como obra de arte) que quer escapar de uma “história que nos separa de nós mesmos, e que deveríamos transpor e atravessar para pensarmos a nós mesmos” (Deleuze, 1992. p.119).
Parece que o filme e a marca que ele deixou queriam perguntar: de que ferramentas precisamos para ouvir e ver agenciamentos coletivos de enunciação e não apenas a queixa-conduta dos indivíduos, a oferta de pão-e-leite ou o ‘me-dá-uma-moeda’? Que lugar ocupamos nesta roda viva que não pára de se reproduzir?
O filme mostra a máquina de Estado (principalmente em suas engrenagens burocráticas e corruptas) se infiltrando nas instituições que deveriam regulá-la: as ONGs (organizações não-governamentais) e suas fachadas assistencialistas de uma população à beira da miséria. Mas acaba dando visibilidade a todo um funcionamento social que acaba tragicamente se utilizando dessas mesmas engrenagens para sobreviver. Eis a roda viva.
E então pergunto: como pensar o que escapa e quer escapar da roda viva e criar novos territórios existenciais
Então, tanto em arte como em política, “trata-se de liberar a vida lá onde ela é prisioneira ou de tentar fazê-lo num combate incerto” (Deleuze/Guattari, 2005. p.222).
[1] Alusão à popular canção Roda Viva de Chico Buarque que fazia uma referência à aparelhagem do estado militarizado e suas estratégias para calar a vida que queria falar.
[2] Para Deleuze (2006, p.346-347) os enunciados não remetem ao EU como sujeito de enunciação. O que produz os enunciados que nos atravessam são massas, matilhas, povos, tribos, enfim, agenciamentos coletivos que nos são interiores e que nós não conhecemos porque fazem parte do nosso próprio inconsciente enquanto multiplicidade. Assim, a tarefa de uma verdadeira análise é descobrir esses agenciamentos de enunciação, esses encadeamentos coletivos, esses povos que estão em nós e que nos fazem falar. Opomos então todo um campo de experimentação pessoal ou de grupo às atividades de uma máquina automática de interpretação ou de aplicação técnica.
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